sábado, 26 de outubro de 2013

LÁ VAI O PORTUGUÊS...

Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa.

Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos. 
 


No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma poderia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho? Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero, ou lá o que é. Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu com muita honra. E nisso não é como o coral que faz pé-firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. (De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda.)

Tem pele de árabe, dizem. Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. Nos engenhos da fome, oriental. Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História.

Chega-se a perguntar: está vivo? E claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado.

Lá anda, é deixá-lo. Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar.

É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos.

Assim, como?
José Cardoso Pires 
E agora, José?

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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

FUTURO ?

Tenho dois irmãos, ambos formados na escola pública e, posteriormente, numa universidade pública. 
O mais novo seguiu ontem as pisadas do mais velho e foi-se embora deste país que gastou dinheiro com a sua formação mas que não precisa dele. 
Para os meus pais foi o segundo desgosto. 
Que pais querem ver os seus filhos serem forçados a partir para outro país?
Os meus irmãos nunca foram alunos geniais. Apenas bons alunos, alunos aplicados. 
Não compraram o curso numa universidade privada nem ficaram na universidade até aos 37 anos. 
Ficaram até aos 23. 
A mesma idade com que, depois de baterem a tantas portas que teimavam em não abrir, decidiram procurar outro país que os valorizasse. 
Podiam ter feito o cartão rosa ou laranja e talvez isso tivesse mudado um pouco o cenário. Mas optaram por não vender a alma ao diabo e o desfecho foi o mesmo que afecta tantos dos nossos familiares, amigos e conhecidos.
Quando na quarta-feira ouvia o hipócrita Passos Coelho, naquele exercício de retórica patética que fez na RTP, a dizer “Nós apostamos muito nos jovens”, enquanto o Diogo aterrava na República Checa, foi provavelmente a única vez que me apeteceu partir-lhe a cara. 
Sou um gajo pacífico, até agora só me apetecia vê-lo preso, ou “encurralado” por uma multidão em fúria. Mal por mal, prefiro sempre ver os vilões a partilhar a cela com um entroncado presidiário de longa data, pronto a dar-lhes todo o carinho do mundo, algo que, infelizmente, nunca acontece.
E enquanto o Diogo se instalava na sua nova cidade, eu via o primeiro-ministro-boy a responder a perguntas de cidadãos “seleccionados”, umas vezes de forma evasiva, outras mostrando claramente não dominar a matéria, mas sempre com aquele ar de superioridade e gozo que não o inibiu de se rir em directo de algumas das pessoas que lhe colocavam as questões, como aquele taxista que não sabia como fazer face às constantes subidas do preço da gasolina. 
Passos ria, alegava motivos ambientais para não descer os impostos sobre os combustíveis e desejava-lhe muitos clientes. E ria com o seu sorriso maroto de quem se está nas tintas para tudo.
Quantas vezes se riem estes gajos de todos nós? 
Gajos que nunca souberam o que é o desespero e a sensação de exclusão de quem procura desesperadamente construir a sua vida? 
Passos Coelho não sabe o que isso é. 
Há muito que garantiu a sua, desde os tempos dos corredores da JSD. 
Não é qualquer um que termina um curso aos 37 anos e salta directamente para o conselho de administração de um empresa. 
É que Passos pode ter terminado a licenciatura tarde, mas já tinha vários doutoramentos da Universidade de Verão do PSD.
Passos é a imagem de um país onde as oportunidades não são iguais para todos. 
Um país onde abanar a bandeira certa pode garantir um emprego. 
Onde a vassalagem está mais viva do que nunca. 
Onde a competência não importa e o estado da nação é a prova disso mesmo. 
Onde Miguel Relvas, Rui Machete ou Paulo Portas podem dizer e fazer o que lhes apetecer sem esperar qualquer tipo de consequências. Deve ser a isto que se referem quando falam em meritocracia…
Se alguma vez conseguirmos pagar esta dívida, algo aparentemente impossível nos moldes impostos, quem estará cá para reerguer este país? 
O que faremos nós com uma população envelhecida e empobrecida no topo de uma pirâmide etária invertida? 
Será que os mesmos jovens que a “elite” mandou emigrar quererão voltar a este país ainda mais pobre na periferia da Europa? 
Ou será Passos, apoiado por exército de boys, quem vai levantar este país de novo? 
Nada disso. 
Por essa altura, Passos Coelho já estará numa instituição internacional qualquer. 
Os boys que se façam à vida…

J.Mendes

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quarta-feira, 2 de outubro de 2013

REVOLTA DOS PORTEIROS

Estas eleições autárquicas trouxeram uma profunda renovação dos protagonistas, mais de metade dos presidentes de câmara é estreante no cargo.
 
Mas, provavelmente, as más práticas, os velhos defeitos, os negócios escuros de sempre, continuarão o seu caminho.

O poder local pode maquilhar-se, mas dificilmente se reformará. 
Continuará refém dum pequeno grupo de corruptos. 


A dimensão deste grupo estima-se em pouco mais de dez por cento, constituem uma minoria, é certo, mas uma minoria que domina mais de noventa por cento dos negócios. 
São os presidentes de câmara e vereadores do urbanismo que permitem valorizações de terrenos da ordem de mais de 700 por cento aos financiadores dos partidos; são os vereadores da via pública que contratam obras por preços obscenos e que permitem ainda derrapagens nos valores contratados; são os detentores dos pelouros de ambiente que concebem modelos de parcerias público-privadas na distribuição de água, com elevada rentabilidade para os concessionários e cujo risco corre por conta do erário público. 
Estes políticos alienam o poder popular a troco de inúmeras vantagens pessoais. Prostituem a sua função.

A maioria dos autarcas é, apesar de tudo, gente materialmente séria. 
Exerce as suas funções com dedicação e competência, não usufrui de benefícios materiais ilícitos. 
Mas ao silenciarem-se perante os corruptos, são igualmente responsáveis. 
Estão anestesiados pelas benesses que os lugares lhes concedem.

O exercício do cargo de vereador confere prestígio social, permite a obtenção de empregos para protegidos, acelera autorizações para realização de obras em casa da sogra, facilita a atribuição de um qualquer fundo europeu para uma empresa de familiares. 
A proximidade do poder traz muitas vantagens de que estes atores não querem abdicar. 
Deslumbrados, e apesar de conhecedores dos mecanismos de corrupção com que convivem, tentam demarcar-se. 
Mas são igualmente cúmplices. 
Como reza o ditado, "é tão ladrão o que vai à horta como o que fica à porta". E a maioria destes políticos são os porteiros. 
Só a sua revolta e a denúncia face às situações que tão bem conhecem poderia regenerar o poder autárquico. 

Paulo Morais

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