segunda-feira, 30 de abril de 2012

A SENTENÇA QUE "FODEU" A BANCA

..., LÁ ANDA...

Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa. 
Lá vai o português, lá anda. 
Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). 
Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. 
Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos. 
No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma poderia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho? 
Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero, ou lá o que é. 
Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu com muita honra. E nisso não é como o coral que faz pé-firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. 
(De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda.) 
Tem pele de árabe, dizem. 
Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. 
Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. 
Nos engenhos da fome, oriental. 
Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História. 
Chega-se a perguntar: está vivo? 
E claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. 
Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. 
Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. 
Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado. 
Lá anda, é deixá-lo. 
Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. 
Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. 
Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. 
Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. 
Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar. 
É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos. 
Assim, como? 

José Cardoso Pires
E agora, José?

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segunda-feira, 23 de abril de 2012

A VALSA DA BURGUESIA

É a valsa da burguesia
Tocada bem a compasso
Pela social-democracia
Para nos travar o passo
Umas vistas muito plurais
Sobre a questão sindical
Nós somos todos iguais
Mas quem manda é o capital
Um ar santinho e beato
De vitima inocente
É o bem triste retrato
Dos que querem dar cabo da gente
Socialismo, sim mas pouco
Para não levantar suspeitas
Barafustar como um louco
E alinhar sempre com as direitas 



José Barata Moura

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quarta-feira, 18 de abril de 2012

EU SOU PORTUGUÊS AQUI


Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.

Eu sou português
aqui
mas nascido deste lado
do lado de cá da vida
do lado do sofrimento
da miséria repetida
do pé descalço
do vento.

Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.

Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar dum marinheiro.

Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota
do acaso
campeão do improviso,
trago as mão sujas do sangue
que empapa a terra que piso.

Eu sou português
aqui
na brilhantina em que embrulho,
do alto da minha esquina
a conversa e a borrasca
eu sou filho do sarilho
do gesto desmesurado
nos cordéis do desenrasca.

Nasci
aqui
no mês de Abril
quando esqueci toda a saudade
e comecei a inventar
em cada gesto
a liberdade.

Nasci
aqui
ao pé do mar
duma garganta magoada no cantar.
Eu sou a festa
inacabada
quase ausente
eu sou a briga
a luta antiga
renovada
ainda urgente.

Eu sou português
aqui
o português sem mestre
mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
dentro do peito.

Eu sou português aqui

José Fanha
Obras de José Fanha

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terça-feira, 17 de abril de 2012

CAMINHAREMOS DE OLHOS DESLUMBRADOS


Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
O gosto a sol e a sangue dos sentidos.

Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.

No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.

Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!

Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.

Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.

Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
E coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.


Ary dos Santos
Liturgia do Sangue

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quarta-feira, 11 de abril de 2012

"BOTAS"



Antonio de Oliveira Salazar.
Trez nomes em sequencia regular...
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

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Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.

Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...

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Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...

Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.

Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.


Fernando Pessoa
Anos 30 do Século XX

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terça-feira, 3 de abril de 2012

COM FÚRIA E RAIVA


Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen
O Nome das Coisas

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