..., LÁ ANDA...
Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa.
Lá vai o português, lá anda.
Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas).
Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda.
Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos.
No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma poderia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho?
Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero, ou lá o que é.
Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu com muita honra. E nisso não é como o coral que faz pé-firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo.
(De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda.)
Tem pele de árabe, dizem.
Olhos de cartógrafo, travo de especiarias.
Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas.
Nos engenhos da fome, oriental.
Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História.
Chega-se a perguntar: está vivo?
E claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro.
Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades.
Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor.
Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado.
Lá anda, é deixá-lo.
Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas.
Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha.
Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato.
Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador.
Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar.
É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos.
Assim, como?
José Cardoso Pires
E agora, José?
Etiquetas: Emigração, José Cardoso Pires, Prosa
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