sábado, 21 de fevereiro de 2009

ENFIM, UM EMPRESÁRIO!

O comunismo (também eufemisticamente conhecido por socialismo) está morto: paz à sua alma. E a sua morte, por implosão, foi de tal forma redentora que nem o nosso Partido Comunista ousa sugeri-lo como alternativa, quando o capitalismo, entregue a si próprio e cumprindo a profecia de Marx, tudo fez também para se autodestruir. A diferença é genética e substancial: o comunismo pressupõe, como inevitabilidade, a ditadura, a corrupção e a ineficácia; o capitalismo tanto pode significar liberdade individual, capacidade de risco, iniciativa e inovação, como pode degenerar na lei da selva, onde o único objectivo é o lucro e a única regra a ganância.

Esta crise serviu para nos mostrar que, acima de qualquer sistema político, existem os homens e os homens não são necessariamente ‘bons selvagens’, todos apostados no ‘ bem comum’ e num código de conduta ética de vida em sociedade por todos aceite e respeitado. Antes ainda de financeira ou económica, esta é uma crise universal de valores e princípios, num tempo em que o dinheiro e as aparências, o sucesso e falta de consciência de deveres e obrigações para com os outros se transformaram no bezerro de oiro. Por isso, acredito que só sairemos verdadeiramente da crise com sangue, suor e lágrimas. Quando os batoteiros forem afastados, os criminosos postos na prisão e o paradigma económico alterado de cima a baixo. Quando as offshores forem banidas, quando os riscos empresariais deixem de ser cobertos pelo Estado, quando as fortunas individuais correspondam a riqueza produzida a favor de todos, quando os rendimentos do trabalho deixem de pagar o dobro de impostos que pagam os da simples especulação financeira. Mas não estou optimista e menos ainda quando olho cá para dentro: nas medidas do Governo Sócrates para combater a crise há coisas certas, coisas que acho erradas e outras que só o tempo julgará. Mas o que não há, manifestamente, é a coragem de tirar as lições que se impõem: Sócrates parece pensar que o caminho é criar mais emprego público, engrossar o Estado e a despesa pública para o futuro, proporcionar mais negócios aos clientes de sempre e esperar que isto dê a volta e se retome o business as usual. Com mais ou menos quilómetros de auto-estradas, mais ou menos TGV, mais ou menos negócios privilegiados para a EDP e outros suspeitos do costume. É a velhíssima sabedoria do príncipe de Salinas.

Mas é justamente nos tempos de crise que se conhece a fibra de cada um. Há os que tiveram azar, que foram apanhados num turbilhão que não causaram e que não podiam antecipar, e há os que se limitaram a acumular lucros fáceis quando tudo era fácil, sem curar da retaguarda, e que, ao primeiro sinal de dificuldades, transferem as responsabilidades para cima do Governo, que tem de os apoiar, ou para cima dos trabalhadores, que têm de despedir. Temos, entre nós, os multimilionários, que cresceram pagando salários de miséria e agenciando contratos sumptuosos com o Estado ou no tráfico de influências com Angola, e que logo anunciam que, infelizmente, coitadinhos, vão ter de despedir porque não conhecem outra alternativa. E os grandes especuladores financeiros, que não criam um posto de trabalho, mecenas com Fundações que servem para fugir ao fisco e aos credores e cujas dívidas contraídas na banca pública e negociadas num ‘almoço de trabalho’ com os boys do PS ou do PSD, são agora incobráveis, até porque (oh, que surpresa!) não têm património pessoal que responda por elas e ninguém lhes exigiu garantias pessoais ou patrimoniais quando lhes emprestou dinheiro a perder de vista. Rezo para que não seja com estes ‘empresários de sucesso’, com estes ‘criadores de riqueza’, com estes comendadores de mérito, que José Sócrates conte para sair da crise e retomar o crescimento do país...

Mas, no meio de tanto pessimismo, aconteceu-me estar a ver um telejornal, na semana passada, e dar com o presidente do Grupo Jerónimo Martins a falar sobre a crise. Confesso que quase só sabia de Alexandre Soares dos Santos que tinha expandido em grande o seu grupo para a Polónia e que tinha o hábito saudável e tão pouco português de começar as reuniões de trabalho quinze minutos antes da hora marcada. E, de repente, vi-o, sem medo nem meias palavras, a fustigar a demagogia do combate aos pseudo-ricos anunciado pelo primeiro-ministro. Melhor ainda, ouvi-o dizer o que iria fazer perante a crise: primeiro, lançaria mão das reservas que teve o cuidado de fazer para enfrentar, se necessário, um ano inteiro de prejuízos; depois, deixaria de pagar dividendos; a seguir, diminuiria o salário dos administradores e quadros do grupo e, tudo não resultando, negociaria com os trabalhadores cortes de horário ou de salários; e só no fim avançaria para os despedimentos se os prejuízos se tornassem insustentáveis. Eis, pensei para comigo, alguém que não perde a calma perante as dificuldades, que não recorre ao expediente mais fácil para enfrentar os problemas e que, no meio do incêndio geral, não perdeu a noção de que uma empresa ou um grupo empresarial não é uma mera fábrica destinada a gerar lucros para os donos, mas também uma entidade que cumpre uma função perante a sociedade, a qual não desaparece nos tempos de crise.

Esta semana, a boa impressão que tinha retido transformou-se numa agradável surpresa, perante a notícia da criação da Fundação Francisco Manuel dos Santos — nome do fundador do grupo e avô do actual presidente. Eis uma Fundação que não serve para esconder lucros do Fisco ou comprar quintas e iates para os seus fundadores. Que, avisadamente, até está proibida estatutariamente de adquirir património, financiando-se com uma dotação anual que sai directamente do bolso de quem a criou. E que não serve para vender ‘arte’ ao Governo ou fazer caridade, mas para estudar, investigar, analisar estatisticamente o país que somos: um centro de estudos capaz de proporcionar aos decisores políticos a tomada de medidas que distinguem um estadista de um político. Contra a espuma da governação, a ilusão das sondagens e os ‘marqueteiros’ eleitorais. Uma Fundação que, como diz Alexandre Soares dos Santos, nasceu para “devolver à sociedade portuguesa uma parte do muito que ela nos deu”. Eis alguém que não reclama mais do Estado, que, pelo contrário, afirma que “a sociedade civil é fraca e muito dependente do Estado” e que sabe que, em época de crise profunda, o clima é propício à emergência dos populismos, que são, quase sempre, o chão onde germinam as ditaduras.

Por si só, esta já seria uma notícia boa, nesta maré de pessimismo em que vivemos mergulhados. Mas o nome de António Barreto para presidir à nova Fundação é ainda um sinal acrescentado de seriedade, competência e diferença. Enfim, uma boa acção.


Miguel Sousa Tavares
Expresso
21 de Fevereiro de 2009

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