terça-feira, 28 de outubro de 2008

TEMPO DE NATAL EM BARRANCOS

-É esse o nosso ofício - aproveitei para explicar. -Desta vez ando à procura de uns fósseis que provam que aqui foi mar há uns quatrocentos milhões de anos.

-Diga-me cá, -salientou o professor. -E como é que aqui foi mar e hoje é tudo terra em seco?

-Bom, isso tem a sua explicação, mas leva tempo.

-Foi o Dilúvio, -meteu-se na conversa o Padre Agostinho, até aí calado, mas particularmente atento.

-Bem, retorqui-lhe -escolhendo as palavras. -Essa é uma história que nos põe num outro campo que nada tem a ver com o nosso trabalho. Uma história que dava pano para mangas... -rematei, sorrindo-lhe.

-Venha para cá no Verão, por altura das festas, -atalhou o eclesiástico -vai ver que gosta. Depois fica aí uns dias connosco para falarmos destas coisas. Tertúlia já nós temos. O Zé Adrião diz que tem lá no monte um peixe petrificado, metido no xisto. O Mário já foi ver e diz que parece mesmo um peixe, assim, grande -e abriu os braços, ao jeito dos pescadores desportivos quando falam das suas proezas. -Temos de ir vê-lo.

Só ao terceiro dia localizei a tão desejada camada com fósseis. Após duas jornadas de insucesso, ocorreu-me pedir ajuda a um pastor com quem já me havia cruzado. Depois de umas palavras de circunstância e de umas festas ao cão, que logo me reconheceu e se aproximou a abanar vigorosamente a cauda, tirei do saco a dita amostra de ftanito bem embrulhada em jornal.

-Vossemecê já viu por aqui pedra como esta, com estes risquinhos? - perguntei, passando-lhe para a mão o exemplàr que trouxera de Lisboa.

-Já vi, sim senhor - respondeu, satisfeito, com o ar de quem sabia do que estava a falar. -Uns são direitos, outros enroladinhos. Têm assim um denteado como a folha da serra de rodear.

-É isso mesmo. E onde é que os posso encontrar? -prossegui, animado pela resposta.

-Há aí vários sítios com esta pedra -disse, olhando-a atentamente. -É muito diferente do resto. É mais dura e não abre nem deixa meter a folha da navalha, como o xisto. Umas são mais claras e outras mais escuras, como esta. Que eu me lembre, assim de repente, aparece ali para o Calvário. Também as há nas Boticas, em Noudar e ao pé da capela de São Ginés -nomes que foi pronunciado, pausadamente, à medida que os ia tirando da memória dos muitos sítios daquele que era o seu mundo. -Mas há mais. Olhe, ali atrás daquele cerro. Está a ver? -e apontou com o cajado. -Na Cerca das Almas, também se apanha obra desta. Há um caminho que passa no alto, -continuou -na direcção de quem vai para a vila. Em lá chegando, vê logo um barranco fundo à sua mão direita. É aí, na ladeira, que há pedra igual a esta, cheínha destas coisas.

Abri o mapa e orientei-o. Lá estava a Cerca das Almas, a uns três quilómetros dali. Marquei o local que me pareceu corresponder à descrição do pastor, dei-lhe os bons dias, fiz mais umas festas ao rafeiro e pus-me a caminho. Era meio dia quando cheguei ao ponto assinalado, dominado por enorme expectativa e pelo receio de mais uma tentativa falhada. Mas não. A camada fossilífera estava finalmente ali, à minha frente. A cada golpe de martelo a rocha abria-se-me nas mãos, repleta dos tão procurados Monograptus. Sentei-me a comer o farnel que sempre levava por almoço e passei o resto da tarde a partir ftanito e a enrolar em jornais todos os fragmentos que contivessem os ditos fósseis, posto o que regressei à vila, ajoujado ao peso da preciosa carga. No fim dessa tarde foi a festa. Festejava-se a despedida, mas também o achado pelo qual já todos ansiavam e que, naturalmente, todos desejavam observar de perto. Desembrulharam-se as amostras e cada um viu o que quis e comentou ou perguntou o que lhe apeteceu.

-Vai já amanhã embora? Na carreira das sete e meia? -perguntou-me por fim um dos presentes que, de seguida, gritou para o empregado, ao fundo da sala -Juzé Manué, bei acá i trázi maih uma jarra di binhú i uma pihca de catalão assadu.

Missão cumprida, podia regressar. E ainda faltavam dois dias para o Ano Bom. Na bagagem trouxe comigo um talego de chita cheio de lembranças dos meus amigos barranquenhos, uma preciosidade que entreguei à minha mãe.

-Isto faz um jeitão -comentou, no seu estilo de experiente e hábil gestora da economia familiar. -Mas que bem que cheiram os enchidos! E este pão, que coisa linda! E estes queijos e estas azeitonas! Louvado seja o Menino! (...)




A.M. Galopim de Carvalho

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Tempo de Natal em Barrancos

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