segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A VIÚVA JUNTO AO RIO



Estou sentada na margem do rio e Deus está sentado ao meu lado. Estou sentada sobre as ervas. Estico o braço e toco as águas que se aproximam da margem para falarem comigo.
Mergulho os dedos e a água é fresca. Ouço as palavras serenas que a água me diz. Deus estica o braço e toca o rio inteiro com pontos de luz.
O corpo do rio agita-se lentamente. Todo o seu corpo é de água. O rio é sempre jovem. Podem passar séculos. Pode passar toda a eternidade. O rio é sempre jovem. Há quarenta anos, o rio era exactamente igual. Eu era diferente. Deus não estava sentado ao meu lado. Há quarenta anos era de manhã.”
….
Aproximei-me do rio, da árvore velha e sentei-me. Passaram instantes em que o esperei, em que imaginei que ele pudesse não vir…
...
O rio continuava o êxodo das coisas belas.

Senti uma mão tocar tocar-me no ombro, voltei-me e vi o sol. Perguntou: Posso sentar-me? Sentimos a presença um do outro. O rio sentiu a nossa presença. O meu olhar ia com o rio. Havia uma aragem que trazia a água, que trazia o fresco da água. Senti os seus dedos no meu pescoço, na minha face, nos meus cabelos. Virei-me para ele. O seu rosto aproximou-se. Os seus lábios aproximaram-se lentamente.

A minha mãe entrou na sala. Os seus olhos eram dois incêndios. Agarrou-me o braço com força e disse nunca mais te vais encontrar com aquele rapaz.

Levaram-me para um quarto onde nunca tinha entrado. Era um quarto que ficava do outro lado da casa.
….
Da janela via-se o rio, via-se as margens e, ao longe muito pequena, via-se a árvore velha. Os homens agarraram-me pelo tornozelo e fecharam-me numa algema de ferro, que estava presa a uma corrente, que estava presa à parede, que entrava dentro da parede. Fecharam a porta.

Passaram-se muitos anos. Debaixo da árvore velha ele ia envelhecendo. De manhã, sentava-se ali sozinho e ficava a olhar o rio e eu ficava a olhá-lo. Tão longe. As criadas envelheceram. A minha mãe envelheceu. Eu envelheci.
….
Uma manhã ele não se sentou debaixo da árvore velha. Essa manhã demorou mais tempo do que os anos em que, ao acordar, sabia que iria vê-lo lá longe, com os contornos recortados pelo rio. Fiquei toda a manhã a olhar o seu espaço vazio debaixo da árvore velha.

Ele nunca mais se sentou na margem do rio.

Eu era muito velha. Tinham passado quarenta anos sobre o dia em que o encontrei na margem do rio, tinham passado quarenta anos sobre a minha vida.
….
Hoje estou sentada na margem do rio e Deus está sentado ao meu lado. Há quarenta anos, era de manhã. Há quarenta anos, o rio era exactamente igual. Estou velha. Também Deus está velho. Sentamo-nos juntos e pensamos. O tempo é mais leve. Nem eu, nem Deus esperamos nada.

José Luís Peixoto

Excerto de: A viúva junto ao rio

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