sexta-feira, 24 de outubro de 2008

REGRESSO DE ORFEU






(...) Orlando Neves retoma, portanto, a ponta de um longo fio, com dois milénios de extensão. Regresso de Orfeu é, como indica o subtítulo, um clamor, que alia a voz, o canto, à exaltação. Podemos considerar a existência de três momentos na totalidade da obra. No primeiro, perdido o carácter superior e divino do passado, Orfeu regressa à terra sem triunfo nem reconhecimento público, para que celebre no seu canto a vida dos homens. Ele é o homem depois da queda, um ser do tempo e da transitoridade, com um destino mortal, e não poderá alterar o mundo, apenas esquecer o passado e viver a vida efémera dos homens, praticando o jogo da coexistência dos contrários e dando com o seu canto uma dimensão sublime ao desejo dos homens. O segundo momento é constituído por um longo parágrafo em que Orfeu responde indirectamente à exortação anterior e se define a si mesmo como um ser múltiplo em que os contrários coexistem sem que seja possível alcançar a unidade (a última e mais dramática expressão dessa multiplicidade é o desmembramento do cadáver de Orfeu). Almejando a unidade, o absoluto e o eterno, encontra-se numa situação humana, corrupta, mortal. Ao passado feliz opõe-se a ruína do presente, o nada, a morte no futuro. Ele é um suicida que é obrigado a viver e a cantar, mas que não obedece à exortação que lhe foi feita e se refugia na solidão, procurando libertar-se da multiplicidade das máscaras e encontrar a verdade. Podemos considerar como um terceiro momento a mais extensa parte da obra, composta por poemas em que o antigo poeta-deus assume a tarefa de que foi incumbido e se apresenta como o sujeito da enunciação. Mas, longe de exaltar a humana condição, Orfeu, em textos com uma tonalidade clássica, declamatória e exclamativa, aprofunda a visão deceptiva da vida, já brevemente enunciada. Ele permanece na zona da indefinição, da oscilação dos contrários: entre a luz e a sombra, entre a noite e o dia, entre a vida e a morte, entre o divino e o humano. Consciente dos males do mundo, está fora do seu alcance modificá-lo. Aspira ao absoluto e ao eterno e está condenado ao precário, ao transitório. Orfeu carrega uma culpa (ter perdido Eurídice), mas não pode sequer viver da memória da felicidade passada, obrigado a, solitário, ser do mundo.

O canto de Orfeu não é agora suave e apaziguador como no passado, mas um canto triste e mortal sobre o declínio, o vazio, o nada. O espaço em que se reconhece é a noite (o apelo à luz tem a marca da brevidade), o esquecimento (embora irrompa, por vezes, a memória da felicidade, o nome fugaz de Eurídice), a solidão, a proximidade da morte que fechará o círculo: «E de novo surgirei, qual ave do sol,/ para ser cinza, eclipse e fatalidade» (p. 63). O itinerário de Orfeu traçado nestes textos implica, além de uma visão profundamente deceptiva da existência, sem amor, sem Eurídice, perdida a própria identidade («Contemplai o homem que o nome perdeu», p. 24), uma problemática da criação poética. Orfeu volta à terra para cantar o destino dos homens, tarefa que inverte. Mas a acção de cantar, o clamor, existe, provam-no os próprios textos que, no entanto, anunciam o vazio e a morte, são eles próprios suicidas, porque se colocam à beira do vazio das palavras, do silêncio total. Orfeu diz que criou, mas já não cria. A criação está ligada à memória (do amor: «Porque é da recordação que falo e a sinto/ porque com ela crio e reflicto...», p. 61) que lhe está interdita, e, vazia a vida, vazio se torna o canto, apenas um eco («Cada dia a vida, agora tácita, repete,/ na áspera lira, o rumor de dentro, onde, Orfeu / de nunca e autor da morte,/ tão-só me ecoo», p. 62).

É interessante como um conjunto de textos que a si próprio se define como um clamor anuncia a morte das palavras e do poeta: «Também em mim vão adoecendo as palavras / e fará branco o meu retorno a nada» (p. 48). Esta é mais uma das oposições que estruturam esta obra de densa leitura, carregada de referências clássicas, mas colocando problemas de natureza filosófica e literária bem actuais. Ouçamos o silêncio dentro do clamor: «Em breve há que atingir o vazio / da memória e nela persistir. Até que / livre das máscaras que nos corpos fui / venha, última, a surdez das vozes» (p. 38-9).


Ana Teresa Diogo
Colóquio/Letras

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2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

ORLANDO NEVES
(Portalegre 11/09/1935 -
Porto 24/01/2005)

Obras publicadas

Poesia

Sopapo para a Destruição da Felicidade (1959); O Silêncio na Cidade (1963); Canção para o Jovem País (1963); Respondo por mim (1971); O Corpo e a Voz (1973); Morte Minuciosa (1976); Diário da Desordem, fragmentos (1984); 20 Ironias Literais (1985); Estátua de Sal (1985); Morte Minuciosa, 2ª edição (1986); Trovas da Infância na Aldeia (1987); Cantigas Obscenas de Escárnio e Maldizer (1987); Regresso de Orféu-Clamor (1988); Clamor de Orfeu, fragmento (1988); Regresso de Orfeu (1989, Prémio Florbela Espanca); Odes de Mitilene (1990, Prémio Oliva Guerra); Lamentação em Cáucaso (1991, Prémio Victor Matos Sá); Ulisses e Nausica (1991); Noema (1991); Decomposição-A Casa (1992); Mar de que Futuro (1993, Prémio Paulo Cid); Organon para a decifração da Poesia, 1ª e 2ª edição (1993); Trovas da Infância na Aldeia, 2ª edição definitiva (1993); Organon para a decifração da Poesia, 3ª edição (1994); Loca Obscura, pranto de Leonor de Sepúlveda (1994, Prémio Manuel Laranjeira); Poesia (1995); Morte Minuciosa, 3ª edição (1996); Máscaras (1997); Os olhos de Alba (1998); O outro discurso de António (1998, Prémio Guerra Junqueiro); Nocturnidade (1999, Prémio Cidade de Almada); Odes a Lisboa (1999); Clamores (2000); Diário de Estar e Ser (2000); Quadras Populares de Humor (2001); Viagem (2002); Página Branca (2003); Tratado Final das Utopias (2004).

Ficção

Pélias ou A Aventura da Argos, narrativas (1961); A Condecoração, contos (1984); O Senhor Garcia - Morte em Campo de Ourique, romance (1991); Morta em Vila Viçosa, romance (1991); Rua do Sol, contos (1992, Prémio João Penha); Histórias de Espanto e Exemplo - Contos da diáspora, contos (1993); Memórias de um Rufia Lisboês, romance (1994); Fabulário, fábulas (1994); Torrebriga-Cenas da Vida no Interior, romance (1999, Prémio Cidade de Almada); Mar de Histórias, contos (1999, Prémio Edmundo de Bettencourt); O Senhor Garcia - Morte em Campo de Ourique, romance - 2ª edição (2000); Parábola da inocência (2002); O manuscrito - O absorto Senhor Donato - A 126ª Geração (2003); Belona (2004).

Teatro

A Execução, seguida de seis peças em 1 acto (1966); Humor Próprio, em colaboração com Pedro Bandeira Freire (1975); Crisântemos e Malmequeres (1987), representado mas não publicado; Trinta Anos de Teatro (1993), críticas e ensaios.

Literatura Infantil

O Mundo dos Porquês, em colaboração com Alexandre Babo (1969); Os Brinquedos do Tó Zé fizeram Banzé, teatro (1978); Aventuras de Animais e outros que tais, teatro, em colaboração com Mendes de Carvalho (1982); Histórias da Ana Alexandra, contos, (1988); Aventuras do Gato Chalupa, contos (1988); O tio Maravilhas, teatro (1991); O Mosquito ZZZ, teatro (1992, Prémio Inatel); Teatro para Crianças (1999).

Dicionários

Dicionário de Frases Feitas (1991); Dicionário das Origens das Frases Feitas (1992); Dicionário do Palavrão e Afins, em colaboração com Carlos Pinto Santos (1993); Dicionário Obsceno da Língua Portuguesa, em colaboração com Carlos Pinto Santos (1997); Dicionário de Expressões correntes (1999); Dicionário de Expressões correntes, 2ª edição (2000); Dicionário da Origem das Palavras (2001); Dicionário do palavrão e de outras inconveniências, com colaboração com Carlos Pinto Santos (2001); Dicionário de nomes próprios (2002); Expressões Bíblicas (2003); Dicionário do nome das coisas e outros epónimos (2004-2005); Dicionário de Superstições (2005).

Crónica

Lisboa em crónica (1968); A Revolução em Ruptura (1976); E Agora, Que Fazer? (1976); Diário de uma Revolução - 25 de Abril a 30 de Setembro de 1974, com colaboração (1979); Eanes, um Presidente no Curso da Constituição, com colaboração de Carlos Pinto Santos (1979); Palhas Alhas (2000).

Vária

Textos Históricos da Revolução (1975); 258 perguntas a um português eleitor, em colaboração (1975); Tomás, Por Ele Mesmo (1977); Da resistência à libertação, em colaboração com Sérgio Guimarães (1977); Agenda Histórica para 1978, em colaboração com Sérgio Guimarães (1978); O Capital, banda desenhada de Carlos Barradas, em colaboração com Pedro Rodrigues (1978); Pão com manteiga, com colaboração (1980); O Castelo Medieval e a Cultura Coeva (1984); De Longe à China, 5 volumes, em colaboração com Carlos Pinto Santos (1988-1996); Portugal, edição em Chinês, em colaboração com Carlos Pinto Santos (1995); Trovas Medievais Obscenas - Cantigas de mal dizer (1997-1998); Aristóteles, biografia (1998); Akhenaton, biografia (1998); Damião de Góis, biografia (1998); Karl Marx, biografia (1998); Martinho Lutero, biografia (1998); O que pensam as mulheres (2002); O Rato Roeu a Rolha da Garrafa - Lengalengas e Trava-Línguas (2003-2004); Ensaios mínimos (2003); Citações de Óscar Wilde (2004); Diálogos Radiofónicos (2004); Volume Primeiro - "Os factos" (2004); Teatro Radiofónico (2004); Volume Segundo - os afectos (2008); Volume Segundo - Os afectos - II (2008).

Obras c/pseudónimo

Um cabaz de anedotas (Donato Domingues) - 2003; Plantas & flores - Histórias e Símbolos (Odete L.Nogueira) - 2004.

sexta-feira, 24 outubro, 2008  
Anonymous Anónimo disse...

Quando um amigo morre, tanto faz que tenha sido há dez, vinte ou trinta anos. Mas Cardoso Pires morreu há dez; e não há nenhum mal em aproveitar a convenção para falar dele. Até porque no fim da vida o esquecerem mais do que ele merecia. A primeira vez que o vi foi em 1960, no Portugal de Salazar e numa Lisboa diferente. O mundo, por assim dizer, "intelectual" era um mundo de homens que se encontrava nos cafés do Chiado, em algumas livrarias, num bar ou noutro e mesmo no ocasional prostíbulo. Conheci Cardoso Pires na revista Almanaque, que ele, de facto, dirigia e em que trabalhavam Luís Sttau Monteiro, Augusto Abelaira e José Cutileiro; e também, na parte gráfica, João Abel Manta e Sebastião Rodrigues. Já conhecia José Cutileiro e, depois da inevitável extinção do Almanaque, só continuei a encontrar Cardoso Pires. Ao princípio remoto (eu andava pelos 18 anos), foi sempre de uma extraordinária generosidade comigo. Aguentou impassível uma absurda crítico a O Anjo Ancorado, que publiquei num jornal universitário. Perdeu um tempo infinito a discutir comigo, pelas tascas do Bairro Alto, como se devia, ou não devia escrever. E, num aperto, até me arranjou um emprego na revista Eva da Dona Carolina Homem Christo. Cardoso Pires resistia com grande orgulho e grande coragem à miséria a que o regime o condenava. "Eles querem dar cabo de mim, mas não dão", costumava avisar o universo nos dias de fúria. E não deram. Pouco a pouco, sem se perder no jornalismo ou na publicidade, chegou à única obra que reflecte com precisão o Portugal urbano da ditadura e do Estado Novo. A guerra e o pós-guerra "são" o Ritual dos Pequenos Vampiros e A Rapariga dos Fósforos; os anos 50, com a sua hipocrisia e "prosperidade", "são" O Anjo Ancorado (um prodígio de inteligência e subtileza); e O Delfim e parte de Alexandra Alfa a decadência do regime e o anúncio profético da sua queda. Pelo meio, claro, vieram livros de "ofício" e alguns fracassos, que naturalmente não o aumentam. O que não importaria se a desilusão do PREC e uma catastrófica passagem pelo Diário de Lisboa do PC, em 1975, não o houvessem paralisado como escritor. Antes de ele morrer, jantámos meia dúzia de vezes, com uma certa melancolia. Estava amargurado e, pior do que isso, como ele próprio insistia, estava "sozinho". O "Prémio Pessoa" ainda o consolou. Muito tarde. Ninguém como ele contribuíra para transformar o português literário, arcaico, rural e afectado, ou populista, académico e pseudo-lírico, numa língua moderna.»

Vasco Pulido Valente
No:Público

sábado, 25 outubro, 2008  

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