domingo, 20 de novembro de 2011

FALECEU O RAUL CÓIAS, ATÉ UM DIA GRANDE ...

Um sorriso de Deus

Foram-se as tardes douradas transparentes de azul leve, cheirando a fruta madura. As tardes de sol pálido espreitando por nuvens baixas, com crepúsculos arroxeados e passos de folhas mortas sussurrando pelos recantos entre rabanadas de vento.
Algumas árvores, ali no largo da feira, exibiam já solitárias, toda a nudez descarnada dos seus ramos desvairados.

À saída da cidade, antes da ponte dos mouros, havia uma álea cerrada que alastrava como um incêndio.
O chão do largo da igreja era um tapete castanho. Dos plátanos de copas em chamas, desprendiam-se folhas secas, iam tombando uma a uma, tontas de melancolia, em círculos como gaivotas, deslizando devagar, num torvelinho trémulo, como lágrimas comovidas. O jardim, com a relva dos canteiros salpicada de amarelo, parecia dormitar numa tristeza monótona que só o repuxo quebrava.

E o Outono foi agonizando lentamente. Grave e triste como um requiem. No ar, deixou aquela impressão doce e funda de nostalgia magoada, de último adeus entre ruínas, de adágio quase pungente, de violoncelo de fogo, num suspiro desesperado. Como se a natureza, varada de espanto e solidão, suspensa, nula e atónita, expirasse enfim de vez e o homem não fosse mais do que a sombra de um fantasma à deriva sobre a terra.
Mas por um sorriso divino, cujo esplendor só o hábito nos impede de ver claro, em qualquer canto remoto deste desértico abandono, germinava a seiva da vida, fermentava nos ramos nus, rebentava a terra lavrada e a natureza em silêncio ia retemperando as forças.
E era assim todos os anos, desde o princípio dos tempos, desde que do caos se fez luz, luz viva como um mistério, suave como um milagre, de que o homem é apenas uma minúscula centelha, uma frágil faiúncula, um reflexo fugaz.

Dezembro apareceu chuvoso e baço. O Inverno aproximava-se sobre as cinzas da paisagem agora naufragada em névoa. Os ramos dos choupos, esguios, do outro lado do rio, recortavam-se a traços negros, agrestes, nas colinas esvaídas. Os contornos dos telhados esfumados num céu de chumbo. A água escorrendo pelas fachadas das casas. As últimas folhas avermelhadas colavam-se ao asfalto molhado das ruas. A cidade fustigada por uma morrinha teimosa ininterrupta e miúda cobriu-se de nuvens negras boiando ao sabor do vento que desgrenhava os quintais.
Depois o tempo limpou. Apareceram tímidas as primeiras abertas, derramando uma luz mortiça sobre os laranjais de prata, curvados ao peso dos frutos. E vieram dias de sol. Anoitecia mais cedo. O Natal estava à porta. As árvores do largo da igreja foram enfeitadas com um rosário de lâmpadas ou de estrelas, suavemente suspenso nos seus ramos quase despidos.
As montras iluminadas das casas comerciais atafulharam-se de brinquedos, entre cânticos ternurentos e um repicar longínquo de sinos.

Veio o Natal dos Hospitais, transmitido pela TV. Realizaram-se as festas. Tiveram lugar os convívios. E com uma sensação de paz branda escorrendo mansamente sobre a indiferença metálica dos gestos habituais, sem quase darmos por isso, era a véspera de natal. Na Rua Vaz Monteiro e na Avenida da Liberdade, o trânsito automóvel tornou-se quase febril. Famílias que vinham de longe e atravessavam a cidade a caminho das suas terras de origem. As pessoas corriam de uma montra para a outra, de caixinhas' debaixo dos braços, entrando e saindo das lojas, mexendo e remexendo em tudo o que estava à mão, espreitando os preços, espiolhando prateleiras envidraçadas à procura das últimas compras, assistindo impacientes à confecção dos embrulhos.
Depois o ambiente de euforia quase contagiante foi-se transformado aos poucos numa e espécie de despedida. A multidão ia-se dispersando. «Boas Festas» «Feliz Natal» e cada um esgueirava-se de passo rápido a caminho de casa. Calou-se o ruído do trânsito. E a noite foi descendo como um manto de veludo, sobre a cidade recolhida. Só o latido de um cão rasgando o silêncio lá fora.

À volta da mesa, a família ficou em vigília ardente.
Uma grande paz interior. Na calma profunda da noite, o retinir dos talheres, as conversas quase em surdina. E por um momento breve, a consciência plena de uma simplicidade perdida, revela-nos brandamente todo o sentido das coisas.
Um sopro inefável de Vida cintila na soturnidade outoniça da nossa dimensão humana.

Sinais do quotidiano. O pão, o lume e a dança dos nossos gestos, a ternura e os afectos, o voo casto das palavras, a alegria das crianças, fragmentos cintilantes da realidade envolvente. Tudo ganha transparência. E o segredo da Verdade, parece tão perto e nítido, tão cristalino e claro que chega quase a sentir-se como um perfume de um cântico no silêncio do coração. Como um halo de transcendência ou um sorriso de Deus.

Sabemos então que é Natal.










Raul Cóias Dias

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15 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

O Raul deixou-nos...Muitas vezes injustiçado pelos homens, escrevia como ninguém e era de uma lucidez que incomodava os acomodados. Que descanse em paz.

domingo, 20 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Um bom professor e um excelente colega. As palavras proferidas neste momento ficam muito aquém daquilo que são realmente os sentimentos sentidos por este ser humano repleto de sabedoria e que tinha sempre algo de novo para nos dizer... Descansa em paz.

domingo, 20 novembro, 2011  
Anonymous Lopes da Costa disse...

O Cóias foi um "Grande Senhor".
Um dos grandes homens de letras deste distrito que é o nosso.
Os seus pontos de vista eram defendidos com mestria de homem simples mas com a cabeça de um homem de grande cultura.
Muito aprendi com ele.
Até breve, grande Cóias.

domingo, 20 novembro, 2011  
Anonymous Alberto disse...

Um grande do desporto desta cidade que o viu nascer e jogar, um profissional do ensino de alta técnica, um homem das letras e da escrita como poucos.

domingo, 20 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Parabéns aos comentadores! Pela primeira vez neste sitio, se pode ler algo de culto e de grande nível. Assim, vale a pena visitá-lo.

segunda-feira, 21 novembro, 2011  
Anonymous Cucu disse...

ou, dito de outra maneira,

... podem as palavras serem desconcertantes no mundo da mentira, da injustiça, da miséria mas...

os sentimentos e a moral que os rege, permanecem intactos dentro de todos nós.

segunda-feira, 21 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

O velório do corpo do Raul Cóias realiza-se hoje na igreja de S.Tiago de Portalegre, sendo o funeral amanhã dia 22.

segunda-feira, 21 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Querido amigo, dos que deixam saudade. Que brilhantes e humildes interpretações sobre o que observavas e lias, mas nunca foste só português e alentejano, és de uma universalidade intelectual que percorre o planeta, sempre percorreu pelo menos as recordações do António Bagorro e tuas no meu coração, grande pensador, grande coração e grande Inspirador. Obrigado.

segunda-feira, 21 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Muitas histórias podiam aqui ser comentadas sobre o Cóias, todas elas nos mostram o HOMEM que foi ao longo da vida, o desportista, o colega de Liceu, o professor, o intelectual.
Perdemos um grande amigo e um GRANDE HOMEM.
A cidade Portalegre e de Ponte de Sôr ficaram muito mais pobre.
Até sempre Cóias!

segunda-feira, 21 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Confesso não ter privado muito com o Raúl, mas dele guardo a ideia de alguém que era afirmada e genuinamente diferente. Uma personalidade curiosa e que gerava curiosidade. Inquieto. Talvez pudesse ter feito mais coisas na vida, mas não sei se as quereria fazer... Que descanse em paz.

terça-feira, 22 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

O Cóias era ímpar!

terça-feira, 22 novembro, 2011  
Anonymous António disse...

Conheci o Raul, foi-me apresentado pelo professor David Mourão-Ferreira, meu mestre,no final da década de 60 do século passado nestes termos: "apresento-te um homem (o Raul Cóias) do Alentejo dos melhores que conheço",(ao que o Raul) informou, "há gente no Alentejo com mais valor do que eu"...
A humildade sempre foi a sua maior virtude...
Um grande abraço à Zé,à Lara, à Telma, à Dulce e ao Carrapiço.
Ficas sempre vivo Raul!

terça-feira, 22 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Jámais seras esquecido...obg por tudo...tua companhia foi das melhores...continuas vivo em minhas memorias....foste unico...até um dia Raul.
Maria Luis Zuzarte...xxxxx

quarta-feira, 23 novembro, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Jámais seras esquecido...obg por tudo...tua companhia foi das melhores...continuas vivo em minhas memorias....foste unico...até um dia Raul.
Maria Luis Zuzarte...xxxxx

quarta-feira, 23 novembro, 2011  
Blogger Severo Dalma disse...

Ponte de sor e a mais xenofoba das cidades portuguesas. Eu vivo a algumas dezenas de kilometros de distancia (quando estou em portugal) e cada vez que vou a ponte de sor a um hipermercado sou ladeado de guardas, por nao me conhecerem. Nas papelarias fogem e nao atendem - e na verdade atendem mal em todo o lado nessa miseravel aldeia/cidade. Uma vergonha.

sexta-feira, 09 dezembro, 2011  

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