FALECEU O RAUL CÓIAS, ATÉ UM DIA GRANDE ...
Um sorriso de Deus
Foram-se as tardes douradas transparentes de azul leve, cheirando a fruta madura. As tardes de sol pálido espreitando por nuvens baixas, com crepúsculos arroxeados e passos de folhas mortas sussurrando pelos recantos entre rabanadas de vento.
Algumas árvores, ali no largo da feira, exibiam já solitárias, toda a nudez descarnada dos seus ramos desvairados.
À saída da cidade, antes da ponte dos mouros, havia uma álea cerrada que alastrava como um incêndio.
O chão do largo da igreja era um tapete castanho. Dos plátanos de copas em chamas, desprendiam-se folhas secas, iam tombando uma a uma, tontas de melancolia, em círculos como gaivotas, deslizando devagar, num torvelinho trémulo, como lágrimas comovidas. O jardim, com a relva dos canteiros salpicada de amarelo, parecia dormitar numa tristeza monótona que só o repuxo quebrava.
E o Outono foi agonizando lentamente. Grave e triste como um requiem. No ar, deixou aquela impressão doce e funda de nostalgia magoada, de último adeus entre ruínas, de adágio quase pungente, de violoncelo de fogo, num suspiro desesperado. Como se a natureza, varada de espanto e solidão, suspensa, nula e atónita, expirasse enfim de vez e o homem não fosse mais do que a sombra de um fantasma à deriva sobre a terra.
Mas por um sorriso divino, cujo esplendor só o hábito nos impede de ver claro, em qualquer canto remoto deste desértico abandono, germinava a seiva da vida, fermentava nos ramos nus, rebentava a terra lavrada e a natureza em silêncio ia retemperando as forças.
E era assim todos os anos, desde o princípio dos tempos, desde que do caos se fez luz, luz viva como um mistério, suave como um milagre, de que o homem é apenas uma minúscula centelha, uma frágil faiúncula, um reflexo fugaz.
Dezembro apareceu chuvoso e baço. O Inverno aproximava-se sobre as cinzas da paisagem agora naufragada em névoa. Os ramos dos choupos, esguios, do outro lado do rio, recortavam-se a traços negros, agrestes, nas colinas esvaídas. Os contornos dos telhados esfumados num céu de chumbo. A água escorrendo pelas fachadas das casas. As últimas folhas avermelhadas colavam-se ao asfalto molhado das ruas. A cidade fustigada por uma morrinha teimosa ininterrupta e miúda cobriu-se de nuvens negras boiando ao sabor do vento que desgrenhava os quintais.
Depois o tempo limpou. Apareceram tímidas as primeiras abertas, derramando uma luz mortiça sobre os laranjais de prata, curvados ao peso dos frutos. E vieram dias de sol. Anoitecia mais cedo. O Natal estava à porta. As árvores do largo da igreja foram enfeitadas com um rosário de lâmpadas ou de estrelas, suavemente suspenso nos seus ramos quase despidos.
As montras iluminadas das casas comerciais atafulharam-se de brinquedos, entre cânticos ternurentos e um repicar longínquo de sinos.
Veio o Natal dos Hospitais, transmitido pela TV. Realizaram-se as festas. Tiveram lugar os convívios. E com uma sensação de paz branda escorrendo mansamente sobre a indiferença metálica dos gestos habituais, sem quase darmos por isso, era a véspera de natal. Na Rua Vaz Monteiro e na Avenida da Liberdade, o trânsito automóvel tornou-se quase febril. Famílias que vinham de longe e atravessavam a cidade a caminho das suas terras de origem. As pessoas corriam de uma montra para a outra, de caixinhas' debaixo dos braços, entrando e saindo das lojas, mexendo e remexendo em tudo o que estava à mão, espreitando os preços, espiolhando prateleiras envidraçadas à procura das últimas compras, assistindo impacientes à confecção dos embrulhos.
Depois o ambiente de euforia quase contagiante foi-se transformado aos poucos numa e espécie de despedida. A multidão ia-se dispersando. «Boas Festas» «Feliz Natal» e cada um esgueirava-se de passo rápido a caminho de casa. Calou-se o ruído do trânsito. E a noite foi descendo como um manto de veludo, sobre a cidade recolhida. Só o latido de um cão rasgando o silêncio lá fora.
À volta da mesa, a família ficou em vigília ardente.
Uma grande paz interior. Na calma profunda da noite, o retinir dos talheres, as conversas quase em surdina. E por um momento breve, a consciência plena de uma simplicidade perdida, revela-nos brandamente todo o sentido das coisas.
Um sopro inefável de Vida cintila na soturnidade outoniça da nossa dimensão humana.
Sinais do quotidiano. O pão, o lume e a dança dos nossos gestos, a ternura e os afectos, o voo casto das palavras, a alegria das crianças, fragmentos cintilantes da realidade envolvente. Tudo ganha transparência. E o segredo da Verdade, parece tão perto e nítido, tão cristalino e claro que chega quase a sentir-se como um perfume de um cântico no silêncio do coração. Como um halo de transcendência ou um sorriso de Deus.
Sabemos então que é Natal.
Raul Cóias Dias
Foram-se as tardes douradas transparentes de azul leve, cheirando a fruta madura. As tardes de sol pálido espreitando por nuvens baixas, com crepúsculos arroxeados e passos de folhas mortas sussurrando pelos recantos entre rabanadas de vento.
Algumas árvores, ali no largo da feira, exibiam já solitárias, toda a nudez descarnada dos seus ramos desvairados.
À saída da cidade, antes da ponte dos mouros, havia uma álea cerrada que alastrava como um incêndio.
O chão do largo da igreja era um tapete castanho. Dos plátanos de copas em chamas, desprendiam-se folhas secas, iam tombando uma a uma, tontas de melancolia, em círculos como gaivotas, deslizando devagar, num torvelinho trémulo, como lágrimas comovidas. O jardim, com a relva dos canteiros salpicada de amarelo, parecia dormitar numa tristeza monótona que só o repuxo quebrava.
E o Outono foi agonizando lentamente. Grave e triste como um requiem. No ar, deixou aquela impressão doce e funda de nostalgia magoada, de último adeus entre ruínas, de adágio quase pungente, de violoncelo de fogo, num suspiro desesperado. Como se a natureza, varada de espanto e solidão, suspensa, nula e atónita, expirasse enfim de vez e o homem não fosse mais do que a sombra de um fantasma à deriva sobre a terra.
Mas por um sorriso divino, cujo esplendor só o hábito nos impede de ver claro, em qualquer canto remoto deste desértico abandono, germinava a seiva da vida, fermentava nos ramos nus, rebentava a terra lavrada e a natureza em silêncio ia retemperando as forças.
E era assim todos os anos, desde o princípio dos tempos, desde que do caos se fez luz, luz viva como um mistério, suave como um milagre, de que o homem é apenas uma minúscula centelha, uma frágil faiúncula, um reflexo fugaz.
Dezembro apareceu chuvoso e baço. O Inverno aproximava-se sobre as cinzas da paisagem agora naufragada em névoa. Os ramos dos choupos, esguios, do outro lado do rio, recortavam-se a traços negros, agrestes, nas colinas esvaídas. Os contornos dos telhados esfumados num céu de chumbo. A água escorrendo pelas fachadas das casas. As últimas folhas avermelhadas colavam-se ao asfalto molhado das ruas. A cidade fustigada por uma morrinha teimosa ininterrupta e miúda cobriu-se de nuvens negras boiando ao sabor do vento que desgrenhava os quintais.
Depois o tempo limpou. Apareceram tímidas as primeiras abertas, derramando uma luz mortiça sobre os laranjais de prata, curvados ao peso dos frutos. E vieram dias de sol. Anoitecia mais cedo. O Natal estava à porta. As árvores do largo da igreja foram enfeitadas com um rosário de lâmpadas ou de estrelas, suavemente suspenso nos seus ramos quase despidos.
As montras iluminadas das casas comerciais atafulharam-se de brinquedos, entre cânticos ternurentos e um repicar longínquo de sinos.
Veio o Natal dos Hospitais, transmitido pela TV. Realizaram-se as festas. Tiveram lugar os convívios. E com uma sensação de paz branda escorrendo mansamente sobre a indiferença metálica dos gestos habituais, sem quase darmos por isso, era a véspera de natal. Na Rua Vaz Monteiro e na Avenida da Liberdade, o trânsito automóvel tornou-se quase febril. Famílias que vinham de longe e atravessavam a cidade a caminho das suas terras de origem. As pessoas corriam de uma montra para a outra, de caixinhas' debaixo dos braços, entrando e saindo das lojas, mexendo e remexendo em tudo o que estava à mão, espreitando os preços, espiolhando prateleiras envidraçadas à procura das últimas compras, assistindo impacientes à confecção dos embrulhos.
Depois o ambiente de euforia quase contagiante foi-se transformado aos poucos numa e espécie de despedida. A multidão ia-se dispersando. «Boas Festas» «Feliz Natal» e cada um esgueirava-se de passo rápido a caminho de casa. Calou-se o ruído do trânsito. E a noite foi descendo como um manto de veludo, sobre a cidade recolhida. Só o latido de um cão rasgando o silêncio lá fora.
À volta da mesa, a família ficou em vigília ardente.
Uma grande paz interior. Na calma profunda da noite, o retinir dos talheres, as conversas quase em surdina. E por um momento breve, a consciência plena de uma simplicidade perdida, revela-nos brandamente todo o sentido das coisas.
Um sopro inefável de Vida cintila na soturnidade outoniça da nossa dimensão humana.
Sinais do quotidiano. O pão, o lume e a dança dos nossos gestos, a ternura e os afectos, o voo casto das palavras, a alegria das crianças, fragmentos cintilantes da realidade envolvente. Tudo ganha transparência. E o segredo da Verdade, parece tão perto e nítido, tão cristalino e claro que chega quase a sentir-se como um perfume de um cântico no silêncio do coração. Como um halo de transcendência ou um sorriso de Deus.
Sabemos então que é Natal.
Raul Cóias Dias
Etiquetas: Ponte de Sôr, Portalegre Cidade do Alto Alentejo, Raul Cóias Dias
15 Comentários:
O Raul deixou-nos...Muitas vezes injustiçado pelos homens, escrevia como ninguém e era de uma lucidez que incomodava os acomodados. Que descanse em paz.
Um bom professor e um excelente colega. As palavras proferidas neste momento ficam muito aquém daquilo que são realmente os sentimentos sentidos por este ser humano repleto de sabedoria e que tinha sempre algo de novo para nos dizer... Descansa em paz.
O Cóias foi um "Grande Senhor".
Um dos grandes homens de letras deste distrito que é o nosso.
Os seus pontos de vista eram defendidos com mestria de homem simples mas com a cabeça de um homem de grande cultura.
Muito aprendi com ele.
Até breve, grande Cóias.
Um grande do desporto desta cidade que o viu nascer e jogar, um profissional do ensino de alta técnica, um homem das letras e da escrita como poucos.
Parabéns aos comentadores! Pela primeira vez neste sitio, se pode ler algo de culto e de grande nível. Assim, vale a pena visitá-lo.
ou, dito de outra maneira,
... podem as palavras serem desconcertantes no mundo da mentira, da injustiça, da miséria mas...
os sentimentos e a moral que os rege, permanecem intactos dentro de todos nós.
O velório do corpo do Raul Cóias realiza-se hoje na igreja de S.Tiago de Portalegre, sendo o funeral amanhã dia 22.
Querido amigo, dos que deixam saudade. Que brilhantes e humildes interpretações sobre o que observavas e lias, mas nunca foste só português e alentejano, és de uma universalidade intelectual que percorre o planeta, sempre percorreu pelo menos as recordações do António Bagorro e tuas no meu coração, grande pensador, grande coração e grande Inspirador. Obrigado.
Muitas histórias podiam aqui ser comentadas sobre o Cóias, todas elas nos mostram o HOMEM que foi ao longo da vida, o desportista, o colega de Liceu, o professor, o intelectual.
Perdemos um grande amigo e um GRANDE HOMEM.
A cidade Portalegre e de Ponte de Sôr ficaram muito mais pobre.
Até sempre Cóias!
Confesso não ter privado muito com o Raúl, mas dele guardo a ideia de alguém que era afirmada e genuinamente diferente. Uma personalidade curiosa e que gerava curiosidade. Inquieto. Talvez pudesse ter feito mais coisas na vida, mas não sei se as quereria fazer... Que descanse em paz.
O Cóias era ímpar!
Conheci o Raul, foi-me apresentado pelo professor David Mourão-Ferreira, meu mestre,no final da década de 60 do século passado nestes termos: "apresento-te um homem (o Raul Cóias) do Alentejo dos melhores que conheço",(ao que o Raul) informou, "há gente no Alentejo com mais valor do que eu"...
A humildade sempre foi a sua maior virtude...
Um grande abraço à Zé,à Lara, à Telma, à Dulce e ao Carrapiço.
Ficas sempre vivo Raul!
Jámais seras esquecido...obg por tudo...tua companhia foi das melhores...continuas vivo em minhas memorias....foste unico...até um dia Raul.
Maria Luis Zuzarte...xxxxx
Jámais seras esquecido...obg por tudo...tua companhia foi das melhores...continuas vivo em minhas memorias....foste unico...até um dia Raul.
Maria Luis Zuzarte...xxxxx
Ponte de sor e a mais xenofoba das cidades portuguesas. Eu vivo a algumas dezenas de kilometros de distancia (quando estou em portugal) e cada vez que vou a ponte de sor a um hipermercado sou ladeado de guardas, por nao me conhecerem. Nas papelarias fogem e nao atendem - e na verdade atendem mal em todo o lado nessa miseravel aldeia/cidade. Uma vergonha.
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