terça-feira, 27 de janeiro de 2009

SALAZAR E A POESIA

(O Salazar morreu e vai hoje a enterrar: «O velho abutre é sábio e alisa as suas penas. / A podridão lhe agrada e seus discursos / têm o dom de tornar as almas mais pequenas» Sophia de Mello Breyner)


A morte dantes era tecida por aranhas de crepes,
necessidade de haver corvos e flores,
solidão exportada para criptas de trevas.

Claro, os tiranos também morrem como nós,
na mesma cera estendida à espera de haver asas
e liberdade nos abismos.

Mas parecem diferentes quando passam como hoje
em cortejos de longos véus de vento e luto
onde só faltam tochas humanas nos passeios para aquecerem a pompa.

Também às vezes acendem os candeeiros nas ruas
para ofuscarem o sol com tules negros
do tamanho de haver sempre noite no planeta.

Nestas ocasiões, os jornais vestem-se de noite
põem as primeiras páginas ao serviço das caveiras,
batem adjectivos nos tambores do papel.

E então principia a raiz solene
da estátua oficial necessária
por subscrição dos Bancos que arrecadam nos cofres montes de mãos suadas.

Depois emitem-se selos para concluir o equilíbrio das pedras
com argamassa de suor alugado
para o morto de bronze, lá em cima, fingir de cristal.

Mas que é isto? De súbito a marcha fúnebre da Heróica volta-se do avesso
com ouro nos trombones em festa
brilhantes de tão esfregados pela pomada Ódio.

E o povo não chora... Que se passa? Guardaram as lágrimas para os filhos presos?
Depressa! Tragam baldes de água podre para encher os olhos desta gente.
E tirem as crianças dos ombros dos pais, para não avistarem o futuro.

Proíbam esta alegria lúgubre de quando a vida parecia só do outro lado
e os homens em redor das aras das clareiras
devoravam a carne dos cavalos de crinas incendiadas

abatidos por Sacerdotes com cutelos de lâminas de sangue
que lhes decepavam as patas para os convivas rituais
beberam a magia vermelha dos Quatro Jorros.

Nesse tempo, morrer não era apenas o peso horizontal do pesadelo,
mas voo, continuação da vida no vinho das ânforas fúnebres
quando os corações mastigados sabiam ao centro do mundo.

Hoje as libações combinam-se pelo telefone,
saboreia-se de boca em boca o entusiasmo de existir a morte
para dançarmos a embriaguez da liberdade em segredo.

Escrevem-se datas nas rolhas do champanhe votivo
que todos tínhamos guardado nas caves
para beber neste grande Dia da Cova Aberta,

em que ninguém consegue esconder a volúpia da sede.
E até eu vou agora erguer, como os outros, a taça negra
- feliz por não ter de obedecer mais a Sua Alteza, o Devorador de pequeninos sóis.

Sua Alteza, que tornou esta pátria mais pequena do que é.
E não somente a Pátria. O Inferno, o Céu, a hora da Morte, a Agonia,
Deus, o Sol, a Lua, a Revolução, as almas, a Fé.

Não é verdade, Sophia?

José Gomes Ferreira
Maio-Abril 1968-1975
Poeta Militante - 3.º volume

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