sexta-feira, 17 de outubro de 2008

ESTAMOS NO ALTO ALENTEJO, MAIS PROPRIAMENTE EM PORTALEGRE

O enigma da elevada percentagem de suicídios no sul do País é o pretexto de onde parte Rui Cardoso Martins para o seu soberbo romance “E se eu gostasse muito de morrer” (Publicações Dom Quixote, 2007).


Os putos estão a jogar à bola (os putos são o Trombeiro, o Tonel, talvez o Besta Porca, o Perneta, o Pipas, o Ganso, o Cruzeta, entre outros, o que logo nos lembra a atmosfera do Bairro Alto magistralmente registada no romance de Dinis Machado “ O que diz Molero”), quando descobrem o cadáver do coveiro, o primeiro suicida a entrar em cena.

Estamos no Alto Alentejo, mais propriamente em Portalegre.

O autor, para efeitos deste romance, é o Cruzeta, voltou à sua infância, aos seus tempos de estudante, vai rememorar situações limite, comportamentos tidos por bizarros ou aberrantes, envolvendo sepulturas, venenos rápidos, enforcamentos. O suicídio é mesmo um pretexto para chegar aos códigos da interioridade: está-se longe de tudo, aí a solidão é miséria, é abandono, é indiferença dos do nosso sangue que partiram para sempre. Quem fica, está marcado por múltiplos estigmas, defende-se com o álcool, esconde os fracassos, embrutece, pratica inverosímeis, injustificáveis crimes passionais. Por vezes, o suicida vem até Lisboa e atira-se da ponte 25 de Abril.
A interioridade vive dos problemas comunitários, das mais desvairadas ofertas para se chegar ao desenvolvimento.

O Liceu foi uma oferta dos suecos. É betão e vidro, pelo que no Verão não se aguenta o calor e no Inverno é inferno. Na interioridade as pessoas desesperam perante um tempo que corre sem sentido. A interioridade tem cães gigantescos, filhos repudiados, desafia-se a velocidade, arrisca-se a vida, mata-se porque não há mais a fazer. É o caso do Zé Carlos que esfaqueou a professora Catarina só para que os pais não soubessem que ele mentia acerca de sucessos inexistentes. A interioridade provoca crueldades, as crianças vingam-se nos animais, a urgência dos hospitais enche-se de desastres e os adolescentes desafiam o senhor Bispo a falar da cumplicidade da Igreja com os crimes da guerra colonial.
A interioridade é um estado de espírito, mesmo com bispado, a fronteira de Espanha perto, diversões, agricultores ricos, pobres e remediados, caixas de multibanco, proprietários ricos a ameaçar deserdar filhos blasfemos.

Aquela interioridade que nos fala Rui Cardoso Martins tem tapeçarias valorosíssimas, seminaristas que lêem revistas pornográficas, ali nasceu o poeta José Duro, viveu José Régio, ali há janelas manuelinas, ali se procura vencer do isolamento graças à Internet.
“E se eu gostasse muito de morrer” não é só escrita primorosa, é um duro libelo onde se manifestam os excluídos de toda a interioridade portuguesa, os que não se matam e enganam o aborrecimento de viver, fantasiando maluqueiras, radicalismos e sucessivos tormentos para desafiar o infinito. De permeio, morre-se de amor, vive-se como um bispo e quando se tem sorte foge-se da parvónia, vem-se até à capital.

O romance é uma viagem alucinante aos confins da memória, insiste-se que Portalegre é um pretexto para o autor recuperar a identidade perdida e lembrar-nos que nos confins de Portugal se vive seja o desespero seja a suspirar pela partida. Porque o encadeado de suicídios, corpos mutilados e a exibição de venenos não passam de metáforas: morre-se, gosta-se de morrer porque não se é livre, porque não se pode optar entre ficar e partir. Mas além disso, o autor desenvolve uma tocante elegia, de grande elegância, sobre a infância e adolescência que nos recorda ter existido.

Na literatura, como na vida, quem sai aos seus não degenera. Lobo Antunes classificou este romance como uma grande promessa. Podemos ir mais longe: testemunha como a língua portuguesa se revigora aprofundando o local com o global, o regional com o universal. Esta interioridade é o tormento que travamos connosco, a acusação de que crescemos no litoral esquecendo mais de metade do país. É uma grande promessa e um grande estímulo para a renovação da nossa escrita, aqui confirmada.

Beja Santos

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