terça-feira, 28 de setembro de 2010

DEPOIS DA TIA BÉ, ...O DO FALSO LICENCIADO!

POEMA PARA LUÍS DE CAMÕES

Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.

Eram estas a grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.

José Saramago
Provavelmente Alegria

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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

COM A FORTUNA NÃO PERDE O SER BESTA

Na carreira veloz, a deusa cega
Lança às vezes a mão a um feio mono
E o sobe, num instante, a um coche, a um trono,
Onde a Virtude com trabalho chega.

Porém se, louca, num jumento pega,
Por mais que o erga não lhe dá abono:
Bem se vê que foi sonho de seu sono,
Quando a vara ou bastão ela lhe entrega.

Pouco importa adornar asno casmurro
Com jaezes reais, mantas de festa,
Se a conhecer se dá no rouco zurro.

Quem, no berço, por vil se manifesta,
Quem nele baixo foi, quem nace burro,
Co'a Fortuna não perde o ser de besta.


Francisco Joaquim Bingre
Sonetos

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quarta-feira, 15 de setembro de 2010




Se houver algum menino, menina, senhor ou senhora que precise de ir à casa de banho fazer xixi, faça o favor de pôr o dedo no ar. A senhora ministra com toda a certeza não se importará de acompanhá-los. Houve alguém que não tenha percebido a mensagem?


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ULISSES-OLISIPO

Desenham-se no céu os números da solidão
por onde James Joyce conseguiu escrever o romance
Ulisses há-de sê-lo bem o meu coração
eu, a minha solidão, o meu transe

A chaminé na cidade deita o fumo da minha angústia
o meu desespero projecta a minha intoxicação
Ulisses, cidade de Dublin, eu, Lisboa, minha cidade
eu, Lisboa, a chaminé, o meu coração

O fumo sobe que sobe sobe que sobe e enche o ar
cidade de Dublin, Lisboa
também eu te vou a cantar

Grande a nostalgia do teu néon luminoso
a sentir-se dentro de mim e a dizer-se que já não posso

Aqui a enorme cidade aqui a tentacular
o meu crime é de estudar o céu que me invade
e onde arranha o arranha-céus.

António Gancho
Edoi Lelia Doura, antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa

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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O PORTALEGRENSE RUI CARDOSO MARTINS É O VENCEDOR DO GRANDE PRÉMIO DE ROMANCE E NOVELA

A obra Deixem Passar o Homem Invisível, de Rui Cardoso Martins, foi distinguida com o Grande Prémio de Romance e Novela Associação Portuguesa de Escritores/Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (APE/DGLB), foi hoje anunciado.



Deixem Passar o Homem Invisível, editada pela Dom Quixote, foi a obra escolhida pela maioria dos membros do júri deste ano presidido por Eugénio Lisboa e constituído ainda por Luís Mourão, Luísa Mellid-Franco, Pedro Mexia e Serafina Martins. Apenas Eugénio Lisboa teve outra escolha para o galardão deste ano, tendo-se manifestado a favor de “O Chão dos Pardais”, de Dulce Maria Cardoso (Asa), avança a APE em comunicado.

A obra de Rui Cardoso Martins, que irá receber um prémio pecuniário de 15 mil euros, foi a escolhida entre as 85 a concurso. Deixem Passar o Homem Invisível é o 24º trabalho distinguido pela Associção Portuguesa de Escritores.

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RUI CARDOSO MARTINS


Rui Cardoso Martins nasceu em 1967, em Portalegre, e tirou o Curso Superior de Comunicação Social da Universidade Nova de Lisboa.
É jornalista fundador do
Público, onde mantém a crónica “Levante-se o Réu” (Pública), das mais antigas da imprensa portuguesa, com dois prémios Gazeta de Jornalismo.
Como repórter cobriu, entre outros acontecimentos, o cerco de Sarajevo e Mostar, na Guerra da Bósnia, e as primeiras eleições livres na África do Sul.
Argumentista fundador e sócio das Produções Fictícias, é co-criador do programa satírico Contra-Informação, que escreve desde o primeiro episódio.
Foi co-autor de Herman Enciclopédia, escreveu para Conversa da Treta (rádio, televisão e teatro) e para o jornal Inimigo Público. Co-autor da série dramática Sociedade Anónima, da RTP. No cinema, é autor do argumento e guião originais da longa-metragem Zona J.

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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

ESCREVER

Se eu pudesse havia de transformar as palavras
em clava.
Havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante, sem música.
Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.
Para quê todo este artifício da composição sintáctica e métrica?
Para quê o arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras, pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo.
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim ou não.
E como isto continuando.

E gostava para as infinitamente delicadas coisas
do espírito...
Quais, mas quais?
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da
pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas...
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.

Ó infinitamente delicadas coisas do espírito!
Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.

Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços e gostos fugitivos.
Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre
vós passaria, transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?


Irene Lisboa
Outono havias de vir

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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

UMA CIDADE

Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.
Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso

numa noite
de junho.

Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.

Albano Martins
Castália e Outros Poemas

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